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Sim, faz mal. E daí?

Vou pegar como gancho o texto da neurocinetista Suzana Herculano-Houzel, publicado na Folha de São Paulo hoje com o título “Maconha faz mal, sim“.

Infelizmente a autora começa o texto muito mal, construindo o que a meu ver é um espantalho desnecessário e, talvez, irreal. Cito as palavras dela:

“As revistas vivem requentando matérias sobre a maconha, sempre com um tom defensivo, ignorando evidências cada vez mais numerosas: “maconha não faz mal”.”

Posso estar enganado, mas não vejo um número muito grande de publicações impressas declarando que o consumo recrativo de maconha não faça mal. Eu sinceramente gostaria de ver alguns exemplos tão explícitos. Tirando algumas letras de músicas do Planet Hemp, confesso que foram poucas as vezes em que vi, li ou ouvi declarações do tipo “maconha não faz mal”.

Certamente vez ou outra aparecem publicações que argumentam que o consumo moderado dessa planta não faça tanto mal quanto se costuma alardear; ou que seja menos prejudicial do que o consumo de outras substâncias, como o álcool e o tabaco, por exemplo. Mas daí a chegar ao ponto que preocupa a neurocientista vai uma certa distância.

A colunista continua o texto e apresenta estudos que evidenciam malefícios que o consumo recreativo da planta pode trazer à saúde das pessoas, porém note-se que no primeiro trabalho fala-se em “consumo pesado”, enquanto o segundo fala em “uso continuado da maconha iniciado ainda na adolescência”. Ora, mas isso pode ser dito sobre uma gama enorme de substâncias, inclusive legais, que ingerimos, com o objetivo a alguma alteração de consciência ou não. A questão é que não deveria estar em pauta se a substância X ou Y faz mal à saúde ou não; o que deve ser discutido é até onde deve ir a mão do Estado para impedir as pessoas adultas de consumirem o que quer que seja. Vale lembrar que nenhum tipo de proposta tornaria legal o consumo de maconha por crianças e adolescentes, assim como fazemos para o álcool e o tabaco (claro, na prática isso não seria tão simples, mas se esse fosse um argumento válido deveríamos também proibir as bebidas e os cigarros). Portanto, a frase “maconha faz mal, sim” escrita em tom triunfante pela neurocientista sequer deveria ser ponto de argumentação.

Todavia, o texto termina com dois parágrafos que eu faço questão de transcrever e subscrever, concordando integralmente com esse final:

“Aproveito para registrar que sou contra a simples descriminalização da maconha, mas defendo a legalização desta e, aliás, de todas as outras drogas formadoras de vício.

Acho profunda burrice torrar o cérebro em troca de um barato –mas isso deve ser decisão pessoal de cada um –e sem financiar a violência que causa problemas para os outros.”

Observação necessária 1: Legalizar não significar “liberar geral”, mas sim regular a produção, distribuição, venda e uso, assim como já é feito no caso do álcool e do tabaco.

Observação necessária 2: Obviamente todas as campanhas que visem à prevenção do consumo devem continuar e, digo mais, serem ampliadas e revistas, de forma a alcançar mais pessoas com mais eficácia e efetividade. Não é porque é legalizado que deve ser incentivado com propagandas e afins. As pessoas têm que ser informadas sobre os riscos a que está sujeita. Nesse quesito, estamos realtivamente bem no caso do tabaco e muito mal no caso das bebidas alcoólicas.

Blogagem Coletiva: Legalização do Aborto

Hoje, sexta-feira dia 28 de setembro, é o Dia Latino-Americano e Caribenho pela Descriminalização e Legalização do Aborto.

Como a maioria das pessoas deve saber, o aborto no Brasil ainda é criminalizado, exceto em 3 situações específicas: gravidez resultante de estupro (caso seja vontade da mulher), no caso de não haver outro meio para salvar a vida da gestante, e devido a decisão recente do STF, em casos de anencefalia fetal (novamente, caso seja vontade da mulher).

Mas ainda é pouco. A mulher ainda não tem autonomia total para tomar decisões que dizem respeito ao seu próprio corpo. Todavia isso não impede e nunca impedirá que ele seja praticado. E, com isso, aquelas que tomarem essa decisão ainda terão que se submeter a métodos clandestinos, perigosos e sem a devida atenção médica (caso não tenham renda suficiente para bancarem uma clínica particular de qualidade que realize o procedimento, que sabemos que existem debaixo de nossos narizes, ou uma viagem ao exterior). Recentemente, nosso vizinho Uruguai reviu a legislação sobre o assunto, e não vejo por que não deveríamos estar tomando o mesmo caminho.

Alguns passos à frente vêm tomando forma, mas não muito. Uma comissão de juristas foi instituída pela presidência do Senado para elaborar o anteprojeto do novo Código Penal, e vem discutindo a ampliação dos casos em que a lei brasileira não punirá o aborto. Ressalte-se que não se trata ainda da descriminalização ou da legalização da prática, mas tão somente da ampliação dos casos em que a mulher pode optar pelo aborto de forma legal. Dentre as possibilidades, encontra-se a seguinte:

Por vontade da gestante até a 12ª semana da gestação (terceiro mês), quando o médico ou psicólogo constatar que a mulher não apresenta condições de arcar com a maternidade.

É pouco. Essa decisão pessoal da mulher não deveria ter que passar pelo aval de um profissional. A decisão é dela, e somente ela deveria ser capaz de decidir se quer ou não levar a gravidez adiante. Não se trata de ter condições (físicas, psicológicas, financeiras, etc) ou não; trata-se de querer levar a gravidez à frente ou não. A legislação brasileira deveria seguir àquelas em vigor nos Estados Unidos, Canadá e a maioria dos países europeus, ou seja, o direito ao aborto deveria ser garantido a qualquer mulher que assim desejasse até a 12ª semana de gravidez.

Termino esse texto com um trecho de um post anterior:

aqueles que são a favor da lei como está ou aqueles que se posicionarão a favor do novo texto talvez não tenham parado para analisar mais detidamente uma incoerência: como ser a favor do direito ao aborto em alguns casos e não o ser em outros? Afinal, estamos falando sobre o direito das mulheres sobre embriões; e estes têm, basicamente, as mesmas características, tenha sido gerado por um estupro ou por sexo consensual, seja fruto de sexo sem proteção ou falha de métodos anticoncepcionais, e assim por diante. Gravidez indesejada é gravidez indesejada, e deveria caber às mulheres a decisão de prosseguir com ela ou não.

Ligações Perigosas

Em um post publicado aqui no blog e no Bule Voador eu trouxe parte da conclusão do Relatório da 4ª Inspeção Nacional de Direitos Humanos do Sistema Conselhos de Psicologia: “Locais de internação para usuários de drogas”, no qual são expostas situações absolutamente degradantes na maioria das chamadas Comunidades Terapêuticas, muitas das quais possuem um evidente cunho religioso, inclusive com o completo cerceamento da liberdade religiosa de seus pacientes. Como é possível verificar no relatório, são descumpridos requisitos básicos que deveriam ser seguidos por esse tipo de unidade de acordo com a legislação (no caso a Resolução – RDC nº 029/2011), o que já deveria ser motivo suficiente para o impedimento do funcionamento de muitas delas, pelo menos se a situação continuar como estava à época do relatório, haja vista o prazo definido para regularização pela RDC nº 29/2011

É importante frisar que não se trata simplesmente de unidades que são apenas administradas por entidades religiosas. Só esse fato, por si só, não levantaria qualquer questionamento, uma vez que, por exemplo, uma quantidade imensa de hospitais mantidos por organizações religiosas, na maioria das vezes católicas, integram a rede conveniada ao Sistema Único de Saúde (SUS) sem qualquer tipo de problema decorrente do fato de serem hospitais administrados por organizações católicas.

Todavia, a coisa muda de figura quando fica evidente a influência danosa da imposição religiosa sobre aqueles que procuram essas comunidades terapêuticas em busca de ajuda, contrariando o inciso I do art. 19 da RDC nº 029/2011, como pode ser lido em um trecho do relatório supracitado:

A maioria dessas práticas sociais adota a opção por um credo, pela fé religiosa, como recurso de tratamento. Além da incompatibilidade com os princípios que regem as políticas públicas, o caráter republicano e laico delas, esta escolha conduz, inevitavelmente, à violação de um direito: a escolha de outro credo ou a opção de não adotar nem seguir nenhuma crença religiosa. Na prática desses lugares, conforme nos foi relatado, os internos são constrangidos a participar de atividades religiosas, mesmo quando sua crença e fé são outras. Até porque inexiste outra possibilidade.”

A vice-presidente da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e Outras Drogas, a psiquiatra Analice Gigliotti, chama atenção para esse problema e afirma em entrevista que o ideal seriam centros de tratamento totalmente laicos, evitando que sejam misturados fundamentos da ciência médica com dogmas de crenças religiosas. O vício em drogas é uma questão de saúde e não de religião, e é sob os cuidados da medicina e da psicologia que as pessoas que procuram tratamento devem ficar abrigados. Além disso, a imposição de um credo específico como parte integrante e (muitas vezes) indissociável de um tratamento não deve ter respaldo, e muito menos financiamento, do sistema público de saúde de um Estado laico.

Infelizmente, a histórica e persistente incompetência do poder público para lidar de forma eficiente, eficaz e efetiva com a questão do tratamento aos drogadictos, aliada às constantes tentativas (muitas vezes bem sucedidas) de aliança nefasta entre o atual governo federal e setores político-religiosos (invariavelmente de matizes conservadores/retrógrados/fundamentalistas), fazem com que surjam algumas pertinentes preocupações.

Recentemente foi noticiado no Correio Braziliense que a ministra-chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, repassou ao ministro da Saúde, Alexandre Padilha, uma cobrança por “flexibilização” no edital da Saúde que destina R$ 100 milhões para comunidades terapêuticas integrarem o plano “Crack, é possível vencer”; tal cobrança partiu do pastor Lori Massolin Filho, liderança de comunidades terapêuticas do Paraná. Após a publicação dessa notícia, o Conselho Federal de Psicologia divulgou em seu site a nota abaixo da Frente Nacional de Drogas e Direitos Humanos (FNDDH).

Nota da Frente Nacional de Drogas e Direitos Humanos sobre informações publicadas na matéria do Jornal Correio Braziliense: Gleisi, Padilha e o pastor

FontePsicologia on-line

A Frente Nacional de Drogas e Direitos Humanos (FNDDH) vem a público externar preocupação diante das informações veiculadas na sexta-feira, 11 de maio, na matéria do jornal Correio Braziliense intitulada “Gleisi, Padilha e o pastor“.

A reportagem traz denúncias de suposto pedido de “flexibilização” em contratos entre Governo Federal e comunidades terapêuticas, como parte do plano de enfrentamento ao crack do Governo Federal. O pedido teria sido enviado pela ministra-chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, ao ministro da saúde, Alexandre Padilha. A matéria afirma que, “Gleisi recebeu email do pastor Lori Massolin Filho, liderança de comunidades terapêuticas do Paraná – estado da ministra – no qual ele cobra ‘flexibilização’ por parte do Governo Federal no edital da Saúde que destina R$ 100 milhões para comunidades terapêuticas integrarem o plano Crack”.

Em nota publicada pelo Conselho Federal de Psicologia em novembro de 2011, em conjunto com a Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial , ambas entidades já haviam colocado suas preocupações em relação à aproximação da ministra-chefe da Casa Civil com grupos religiosos ligados às comunidades terapêuticas.

A FNDDH reforça que as Comunidades Terapêuticas não respeitam as deliberações das Conferências de Saúde e de Saúde Mental, as quais recusaram o financiamento público das comunidades terapêuticas e sua inclusão à rede de atenção em álcool e outras drogas do SUS, na medida em que desrespeitam seus princípios. A precária condição destas comunidades terapêuticas em todo o Brasil foi denunciada no Relatório da 4ª Inspeção Nacional de Direitos Humanos do Sistema Conselhos de Psicologia: “Locais de internação para usuários de drogas”que constatou graves situações de violação aos direitos humanos nestes locais. Essas comunidades tem suas práticas alicerçadas em princípios religiosos, em função das instituições e dos grupos a que servem e aos quais suas origens estão vinculadas. O Estado brasileiro é laico e assim devem ser suas políticas e serviços de atenção.

Conclamamos a toda a sociedade para que fique atenta e questione os interesses que o Governo Federal atende ao destinar 100 milhões de reais para estas organizações. A matéria veiculada pelo Correio Brasiliense indica que a atual política de álcool e outras drogas, ao prever o financiamento das comunidades terapêuticas, ao invés de respeitar as diretrizes do SUS, respondeu a interesses de um setor religioso, a partir de alianças de membros do governo com esse setor. É inadimissível que a proximidade entre uma representante do governo federal, como é a ministra-chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, e um pastor, como mostra a matéria do Correio Braziliense, interfira  nas diretrizes e nas políticas implementadas pelo Estado brasileiro.

O tratamento dos usuários de álcool e outras drogas, incluído neste conjunto o crack, deve seguir os princípios do SUS e da Reforma Psiquiátrica, sendo este o caminho a ser trilhado pelo financiamento: a ampliação da rede substitutiva. O montante financeiro que o governo federal pretende investir nas comunidades terapêuticas deve ser usado para potencializar a rede substitutiva de saúde mental. Dessa forma, teremos a chance de intervir de forma responsável na questão do cuidado com o usuário abusivo de álcool e outras drogas.

É preciso fiscalizar a que interesses respondem o repasse financeiro das verbas públicas às comunidades terapêuticas, em sua maioria, ligadas a setores e instituições religiosas. Por um Estado laico e democrático, para que sejam respeitadas as diretrizes do SUS, por políticas públicas que respeitem os direitos sociais e os direitos humanos!

Financiamento de curso de Homeopatia pela SES-MG

Texto também publicado no site do Desafio 10:23

Uma coisa que os defensores da homeopatia insistem em ignorar é que essa prática, pelo menos no que se refere ao uso de substâncias ultra-mega-hiper-diluídas, não é capaz de passar em testes científicos rigorosos. No blog do Desafio 10:23 foram publicados diversos textos embasando a ineficácia da homeopatia.

Todavia, infelizmente, não são apenas os praticantes da homeopatia que se negam a aceitar as evidências. Conselhos de classe são igualmente surdos para isso (em especial os de medicina, medicina veterinária, farmácia e odontologia). Gestores do Sistema Único de Saúde também se negam a aceitar as evidências científicas, haja vista a publicação, em 2006, de uma portaria do Ministério da Saúde que regulamenta essa prática (dentre outras) no SUS. E agora acabo de ver uma publicação no Diário Oficial do Estado de Minas Gerais que parte da mesma ignorância científica (Deliberação CIB-SUS/MG nº 1.113/2012).

A Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais (SES-MG) irá financiar um curso à distância denominado “Introdução à Homeopatia”, destinado a médicos, cirurgiões-dentistas, farmacêuticos e médicos veterinários do SUS-MG, com o objetivo principal de apresentar “as concepções da homeopatia e suas aplicações nas diversas áreas, contribuindo para a implementação da Política Estadual de Práticas Integrativas e Complementares no estado de Minas Gerais”. Segundo o projeto do curso, a previsão do custo é R$ 212.792,06 mais o curso de capacitação de tutores de R$ 20.818,75, totalizando R$ 233.610,81.

Chamou-me a atenção também um dos objetivos específicos do curso: “Promover discussão sobre a cientificidade da homeopatia.” (grifo meu). Ora, se fosse para discutir a suposta “cientificidade da homeopatia”, o curso terminaria logo no primeiro dia com a apresentação das fartas evidências que refutam tanto os pressupostos da prática como os seus supostos efeitos.

Infelizmente os praticantes da homeopatia se agarram a uma suposta eficácia comprovada pela “experiência clínica”. Todavia, como confirmar essa suposta eficácia se quando submetidos a condições controladas não se consegue diferenciá-la do efeito placebo, ou se os pacientes continuam mantendo tratamentos tradicionais concomitantemente (até por reconhecimento de homeopatas de que sua prática seria “complementar” e suspender de imediato os tratamentos convencionais poderia trazer conseqüências indesejáveis e até perigosas), o que torna meio complicado afirmar se a causa de uma eventual melhora se deve à homeopatia ou à continuidade do tratamento convencional, ou até se muitas doenças simplesmente desapareceriam ao seguir seu curso natural (afinal, todos temos sistema imunológico, e para muitos agravos só ele nos basta).

Um estudo muito citado por aqueles que se opõem ao uso e, em especial, ao financiamento público de práticas homeopáticas é a revisão publicada na The Lancet em 2005, a qual identificou que preparados homeopáticos não difeririam de placebos. Obviamente este não é o único e nem o mais recente. Por exemplo, um posto do blog RNAm traz mais duas referências importantes:

Renckens, C. (2009). A Dutch View of the ”Science” of CAM 1986–2003 Evaluation & the Health Professions, 32 (4), 431-450 DOI: 10.1177/0163278709346815: Avaliação do governo holandês sobre o subsídio de medicinas alternativas no período entre 1986 e 2003. Os poucos resultados satisfatórios foram atribuídos a pobres metodologias de análise como a falta de grupos-controle tratados com placebo. Alguns estudos relataram resultados negativos. Esses dados culminaram na suspensão da verba governamental destinada a práticas complementares.

Nuhn, T., Lüdtke, R., & Geraedts, M. (2010). Placebo effect sizes in homeopathic compared to conventional drugs – a systematic review of randomised controlled trials Homeopathy, 99 (1), 76-82 DOI: 10.1016/j.homp.2009.11.002: Esse estudo derrubou a hipótese de que os ensaios testando a validade clínica da homeopatia falhavam por apresentarem grupos-controle tratados com placebo que retornavam efeitos maiores dos observados em ensaios clínicos alopáticos. A conclusão foi de que os grupos-controle tratados com placebo dos ensaios homeopáticos não demonstraram efeitos maiores dos observados na medicina convencional.

Posso citar também um artigo publicado no The Guardian, no qual se lê: “Over a dozen systematic reviews of homeopathy have been published. Almost uniformly, they come to the conclusion that homeopathic remedies are not different from placebo.” (Tradução livre: “Mais de uma dúzia de revisões sistemáticas de homeopatia foram publicadas. Quase uniformemente, elas chegaram à conclusão que remédios homeopáticos não são diferentes de placebo”).

Enfim, essa foi mais uma conquista dessa pseudociência que vem cada vez mais ganhando espaço no nosso sistema público de saúde, a despeito das evidências de sua ineficácia.

STF julgará direito à interrupção da gestação de fetos anencéfalos

Após vários anos de debates, o Supremo Tribunal Federal (STF) deve julgar nesta quarta-feira, 11/04/2012, a Ação por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 54/DF) ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde, que pretende autorizar a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos, se essa for a vontade da gestante.

É bom que fique claro uma coisa: nenhuma mulher será obrigada a interromper uma gravidez caso se constate que o feto é anencéfalo (por incrível que pareça tem gente por aí que acha que a interrupção dessas gestações seria obrigatória, o que obviamente não é o caso).

Outra coisa importante de ser dita é que não há expectativa considerável de vida em casos de anencefalia, já escrevi sobre isso em um texto anterior (o qual recomendo a leitura), chamando a atenção para o atual consenso científico que sustenta que ocorrerá a morte fetal, o parto de um natimorto, ou a morte neonatal em praticamente todos os casos.

Um outro texto interessante que eu também publiquei aqui (leitura também recomendada) foi o discurso do ex-Ministro Da Saúde, José Gomes Temporão, proferido em 04/09/2009 em uma audiência pública no STF. Temporão afirmou que é possível “assegurar o diagnóstico da anencefalia pela incorporação de tecnologias por imagem como a ecografia“, além de esclarecer que “o SUS tem plenas condições de oferecer, e oferece, diagnóstico seguro às mulheres durante o pré-natal. A imagem ecográfica é clara em diagnosticar um feto com anencefalia. Na medicina fetal, há duas certezas no diagnóstico por imagem: o óbito fetal e a anencefalia.

Um texto recente do Blogueiras Feministas traz um resumo bem completo da história dessa ação no STF; vale a pena dar uma lida para estar por dentro do assunto.

Recomendo ainda os vídeos sobre esse tema disponíveis no site Estação Saúde, mantido por Dr. Drauzio Varella (valem muito a pena, em especial os vídeos da entrevista com Thomaz Gollop, médico e professor de Ginecologia da Faculdade de Medicina de Jundiaí).

Por fim, deixo abaixo um vídeo da série “Saiba Mais” do canal do STF no youtube.

Direito ao Aborto: passos à frente, mas não muito.

Reunião da Comissão de Juristas para elaboração do anteprojeto do novo Código Penal. Grupos contra a ampliação do direito ao aborto protestam ao fundo.

Como todos sabemos, atualmente o aborto é crime no Brasil (embora desconheça notícias de pessoas presas pela prática), exceto em duas situações específicas descritas no Código Penal: gravidez resultante de estupro (caso seja vontade da mulher) e no caso de não haver outro meio para salvar a vida da gestante.

Uma comissão de juristas instituída pela presidência do Senado para elaborar o anteprojeto do novo Código Penal vem discutindo a ampliação dos casos em que a lei brasileira não punirá o aborto. Ressalte-se que não se trata ainda da descriminalização ou da legalização da prática, mas tão somente da ampliação dos casos em que a mulher pode optar pelo aborto de forma legal.

Conforme disse o relator-geral da comissão, o procurador Luiz Carlos Gonçalves:

“Há setores que defendem a descriminalização do aborto e há setores que defendem a permanência do texto atual. Estes segmentos são dignos de respeito. Puderam trazer seus pontos de vista. Todos foram ouvidos. A solução que encontramos foi a intermediária. Aborto permanece crime. O que fizermos, porém foi permitir que não o seja em algumas situações”

Dessa forma, a comissão proporá cinco outras possibilidades:

– quando a mulher for vítima de inseminação artificial com a qual não tenha concordância;

– quando o feto estiver irremediavelmente condenado por anencefalia e outras doenças físicas e mentais graves;

– quando houver risco à vida ou à saúde da gestante;

por vontade da gestante até a 12ª semana da gestação (terceiro mês), quando o médico ou psicólogo constatar que a mulher não apresenta condições de arcar com a maternidade.

Vê-se, portanto, que caso tal reforma no Código Penal se confirme, haverá avanços importantes na conquista desse direito das mulheres. Todavia, quero me deter no último ponto destacado acima.

Eu posiciono-me a favor de uma legislação que siga àquelas em vigor nos Estados Unidos, Canadá e a maioria dos países europeus, ou seja, o direito ao aborto deveria ser garantido a qualquer mulher que assim desejasse até a 12ª semana de gravidez. Por isso, vejo um problema complicado na proposta do novo Código Penal, que reside na necessidade de “o médico ou psicólogo constatar que a mulher não apresenta condições de arcar com a maternidade”.

Ou seja, dá-se com uma mão, mas tira-se com a outra, uma vez que a decisão final continuaria fora do âmbito da pessoa mais interessada: a mulher.

Para mim, todo esse cuidado em agradar aqueles que se colocam contra o direito irrestrito ao aborto parece, de certa forma, bem hipócrita. Não me refiro àqueles que se colocam contra o direito ao aborto sob quaisquer circunstâncias (inclusive nas atualmente permitidas), pois estes estão, ao menos, sendo coerentes ao serem contra todos os abortos provocados.

Todavia, aqueles que são a favor da lei como está ou aqueles que se posicionarão a favor do novo texto talvez não tenham parado para analisar mais detidamente uma incoerência: como ser a favor do direito ao aborto em alguns casos e não o ser em outros? Afinal, estamos falando sobre o direito das mulheres sobre embriões; e estes têm, basicamente, as mesmas características, tenha sido gerado por um estupro ou por sexo consensual, seja fruto de sexo sem proteção ou falha de métodos anticoncepcionais, e assim por diante. Gravidez indesejada é gravidez indesejada, e deveria caber às mulheres a decisão de prosseguir com ela ou não. Colocar nas mãos de um profissional (médico ou psicólogo) a decisão de se a gestante tem ou não condições de arcar com a maternidade mantém o alijamento dos direitos reprodutivos das mulheres. Além de este ser um conceito bem frouxo, pois quem decidirá o que é ter condições de ser mãe ou não?

Ressalte-se ainda a histórica diferença de acesso a serviços de saúde entre aquelas que dependem exclusivamente do Sistema Único de Saúde – SUS, as usuárias de planos de saúde e as que podem custear consultas e tratamentos particulares. Corre-se o risco de continuarmos na mesma lógica atual, mulheres com melhores condições econômicas tendo acesso relativamente fácil a profissionais (e seus laudos) e estabelecimentos de saúde para realizarem abortos de forma segura e supervisionada, enquanto uma parte considerável da população feminina continuará (pela falta de acesso ou por ineficiência do sistema de saúde), em muitos casos, precisando recorrer a métodos inseguros e profissionais e clínicas clandestinos.

Como bem escreveu o Daniel Martins de Barros em sua coluna no Estadão, “ou bem a pergunta sobre “condições psicológicas” não deve ser feita ou bem só quem pode respondê-la é a própria mulher.“.

Parece-me que mesmo na redação atual do Código Penal, assim como na proposta da nova legislação, o Estado brasileiro já reconhece que a mulher é mais importante que o embrião, tanto que nas situações permitidas a vontade da mulher (como no caso do estupro) ou suas necessidades (como no caso de risco à sua vida) são soberanas sobre o embrião em formação; assim, por que não deixar a hipocrisia de lado e avançar de forma mais efetiva?

Fica a pergunta para reflexão.

Inegociável deveria ser a liberdade das mulheres sobre seus corpos

Recentemente a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)  enviou uma carta à Presidenta da República criticando a posição da nova ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres, Eleonora Menicucci, que, no passado, defendera publicamente a ampliação dos casos em que o aborto seja praticado de forma legal.

Obviamente, a CNBB está em seu direito de se manifestar sobre um assunto que considere importante, e como todos sabemos a posição oficial da Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) é clara sobre esse assunto: posiciona-se contra qualquer ampliação dos casos em que o aborto é permitido no Brasil. Há até setores que defendem que os casos atualmente legalizados sejam criminalizados (gravidez decorrente de estupro e se não há outro meio de salvar a vida da gestante). Todavia, uma declaração do presidente da CNBB, Raymundo Damasceno Assis, chamou-me a atenção. Após reafirmar que sua igreja “defende sempre a vida”, a qual ele entende como sendo desde a concepção até a morte “natural”, ele declarou que essa é “uma questão inegociável”.

Essa declaração do representante da ICAR é, se analisada atentamente, um verdadeiro acinte à laicidade do Estado brasileiro. Em um Estado laico, como deveria ser o Brasil, política e religião não deveriam se misturar. O Estado não se intromete nas religiões, garantindo a autonomia, a liberdade de crença, culto e posicionamento filosófico, o que faz-se muito bem no Brasil, por sinal. E em contrapartida as instituições religiosas não deveriam interferir nas políticas públicas, entretanto infelizmente não é isso o que vemos em temas como a legalização do aborto, a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, e outros. O que dom Raymundo parece não perceber ao declarar que a “defesa da vida” por parte de sua igreja é “inegociável” é que, na verdade, a ICAR ou qualquer outra denominação religiosa, como as dezenas de igrejas evangélicas que detém hoje um considerável poder político, sequer deveriam achar que têm o direito de “negociar” qualquer coisa no que se refere a decisões de políticas públicas. Se o Estado é constitucionalmente separado das religiões, um não interfere no quadrado do outro. Simples assim.

Vejam bem, ninguém quer obrigar ninguém a ser a favor da legalização do aborto em quaisquer casos que a mulher decida e, claro, até uma determinada idade gestacional, por exemplo, 12 semanas, se formos considerar a legislação de outros países socialmente mais desenvolvidos. A ICAR e as dezenas de igrejas evangélicas, bem como suas ovelhas, continuarão com seu direito inegociável (aí sim a palavra fica bem aplicada) de serem oficialmente contra. O que estas não podem (ou não poderiam) fazer é querer impor as suas crenças ao total da população do país.

Ademais, ressalte-se que essa posição oficial da ICAR e de outras igrejas cristãs passa longe da realidade de uma parte dos seus fiéis. Dou como exemplo a corajosa ONG Católicas pelo Direito de Decidir e a ampla pesquisa realizada pela Universidade de Brasília, a qual constatou que das mulheres pesquisadas que abortaram, 88% tinham alguma religião, sendo que 65% eram católicas e 25% eram protestantes.

O título deste texto é um pequeno recado aos representantes das religiões que, infelizmente, têm conquistado um poder político que põe em risco a incipiente e capenga laicidade do Estado brasileiro: Inegociável são a liberdade e autonomia totais das mulheres sobre os seus corpos.

Fontes:

Estadão

Católicas pelo Direito de Decidir

UnB Agência

Considerações sobre a importância das evidências científicas

Em junho de 2011, o psiquiatra Daniel Martins de Barros, autor do blog Psiquiatria e Sociedade, hospedado no site do Estadão, escreveu um texto intitulado “Pelo fim das leis inúteis (uma Legislação Baseada em Evidências)”. O texto propõe o que ele chama de “Legislação baseada em evidências”, que nortearia a criação de leis de acordo com uma regra bem simples: projetos de leis deveriam ter como base evidências sólidas, buscadas na literatura das ciências humanas, biológicas ou exatas, ou até em experiências documentadas em outras regiões do mundo.

Segundo o autor, a intenção seria criar um movimento semelhante ao ocorrido na década de 90 do século passado no âmbito da medicina: a Medicina Baseada em Evidências (MBE). Nesse contexto, as decisões médicas baseadas apenas em experiência pessoal e conhecimentos adquiridos durante a formação passaram a dar lugar à utilização ponderada das melhores evidências científicas existentes, visando à tomada da melhor decisão para o tratamento individual ou coletivo dos pacientes. Embora a MBE ainda encontre resistência em alguns setores da medicina, por exemplo, a homeopatia, não há dúvidas de que, ao substituir opiniões por conhecimentos embasados, ela trouxe eficácia e segurança aos tratamentos médicos.

O autor voltou ao tema este mês em um novo texto chamado “Frustrações com a hipnose, da Suécia ao Paraná”, utilizando como gancho a reinauguração do Laboratório de Hipnose no Instituto de Criminalística do Paraná (segundo o site da instituição, “o único da América Latina especializado no uso desta técnica para colaborar com a investigação de crimes”), que funcionou de 1998 a 2008, quando foi fechado, e reabriu em dezembro do ano passado.

O Instituto de Criminalística do Paraná descreve as aplicações da hipnose na colaboração da investigação de crimes da seguinte forma:

“Geralmente é utilizada quando a vítima ou testemunha de um crime, sofreu traumas decorrentes da violência empregada pelo agressor ou por qualquer outro motivo, que resulte em bloqueio mental e, por isso, não consegue descrever o criminoso e nem fatos que ocorreram. Muito utilizada em casos de assalto, seqüestro, estupro e atropelamentos em que a vítima ou testemunha está com amnésia total ou parcial em relação aos detalhes gerais ou fisionômicos que observou e não consegue descrever.”

O referido instituto faz ainda uma ressalva quanto ao uso da hipnose:

“A hipnose não se constitui na prova em si, mas através da hipermnésia (potencialização da memória) tem se constituído em elemento importante, trazendo à tona detalhes para a investigação criminal que estão esquecidas devido ao trauma psicológico sofrido pela vítima ou testemunha. Todavia, cabe às provas testemunhais, através da investigação e ao laudo pericial, que representa a materialidade do delito, as provas em si.”

Nesse momento, entra a objeção do Daniel Barros, pois segundo ele “as revisões sistemáticas da literatura científica mostram que a hipnose não é um meio confiável de resgatar lembranças” e, portanto, resgatando a questão da “Legislação baseada em evidências” proposta por ele, seriam necessárias mais pesquisas antes da proposição de novas leis ou da utilização de certos procedimentos judiciais, como nesse caso do Instituto de Criminalística do Paraná.

De acordo com o autor, embora a hipnose possa ser eficaz em outras aplicações, como controle da dor e relaxamento, sua utilização no resgate de memórias seria problemática, pois o número de lembranças corretas das pessoas sob estado hipnótico aumentaria na mesma proporção em que ocorrem falsas memórias, sendo que haveria ainda um agravante: a hipnose tornaria as pessoas mais confiantes nas suas lembranças, mesmo que sejam falsas. O autor cita também, como exemplo, que vários estados dos EUA proíbem que pessoas que foram hipnotizadas sejam ouvidas como testemunhas posteriormente, uma vez que a crença de que as lembranças que emergem sob estado hipnótico são verdadeiras é muito forte, independentemente da veracidade da recordação.

Entretanto, não se deve jogar tudo “na lata do lixo”. Daniel Barros faz uma ressalva bem interessante:

“Há que se ressaltar, no entanto, que algumas técnicas de entrevista usadas pelos hipnólogos podem ser úteis, mas por outras razões: enquanto policiais normalmente interrompem o fluxo de ideias na hora de interrogar as pessoas, usam perguntas fechadas (tipo sim/não), induzem respostas e não raro transmitem juízos de valor ao longo do interrogatório, a abordagem do entrevistador afeito à hipnose é em tudo oposta, facilitando o acesso dos sujeitos a suas memórias. Isso sem qualquer relação com um estado transe hipnótico.”

Aproveito esse trecho para fazer um paralelo direto com a atuação de alguns profissionais de saúde que praticam ou têm certa afinidade com áreas ditas “alternativas”, “integrativas” ou “complementares” das ciências da saúde. Tomando como exemplo a medicina, em um contexto no qual profissionais apressados tendem a fazer consultas curtíssimas, às vezes de 10-15 minutos ou menos, talvez dando a impressão de quase não estar prestando atenção no que o paciente relata, e comparando essa situação com as relativamente longas consultas homeopáticas, em que o médico se propõe a ouvir tudo o que o paciente quiser relatar, demonstrando que realmente se preocupa com aquela pessoa que está em sua frente, em qual desses quadros o profissional terá mais condições de encontrar a raiz de determinado problema de saúde?

Deixando de lado coisas como “desequilíbrio energético”, “cura pelo semelhante” e “diluições infinitesimais”, os médicos (e outros profissionais de saúde) poderiam se beneficiar de expedientes utilizados pelos seus colegas das “práticas complementares”?

Ora, muitos já o fazem muito bem (embora há os que resistam). Há profissionais que fazem questão de ficar com seus pacientes pelo tempo necessário para uma averiguação das causas de uma determinada condição e posterior ataque a estas, fugindo da lógica de consultas relâmpagos que só têm o objetivo de identificar sintomas e medicá-los para que sumam. Não saberia dizer com certeza (embora desconfie) se tais profissionais são a regra ou a exceção (arrisco a dizer que a proporção deve ser diferente nos contextos privado, dos planos de saúde e público); limito-me a ter esperança de que um dia a maioria absoluta dos profissionais de saúde (e analogamente de outras áreas, como a segurança) reconheça a importância de se unir as melhores evidências científicas com a arte de escutar o outro e investigar a fundo um determinado problema.

Parasitas do espaço público

Acabo de ver no R7 uma notícia bem interessante. Cheguei a ela lendo um texto de Isabella Ianelli publicado no site Papo de Homem.

Segundo a notícia, entrou em vigor no dia 26/12 do ano passado uma lei municípal em Novo Hamburgo-RS que proíbe a atuação de “guardadores de carros” em locai públicos, os famosos “flanelinhas”. De acordo com o portal de notícias, os suspeitos de estarem exercendo essa atividade, pegos em flagrante pela polícia, deverão ser encaminhados para projetos sociais da prefeitura, com o objetivo de encaminhá-los para um setor de busca de emprego. NO casod e recusa, a pessoa deverá responder pelo crime de exploração indevida da atividade nas vias públicas.

Não sei bem qual será a efetividade dessa lei, mas considero-a louvável e gostaria de vê-la reproduzida em outras cidades do país.

Primeiro, porque a rua é pública. Ninguém deveria tomar para si o “direito” (entre muitas aspas) de lotear parte das vagas de um determinado local público para extorquir as pessoas que querem estacionar naquele determinado local. E uso aqui a palavra extorquir baseado em minha experiência pessoal, em relatos de amigos e em reportagens frequentes na TV. Quase sempre não se trata de um simples pedido de uma “ajuda pro cafezinho”, mas sim de uma verdadeira cobrança, algumas vezes intimidatória, como se estivéssemos adentrando um estacionamento privado (claro que há exceções, já encontrei flanelinhas que não se importaram quando eu avisava que estava com o bolso vazio, mas estes são raros). Chega-se, muitas vezes, ao cúmulo de estipularem preço fixo para deixarmos o carro no meio da rua; 5 reais, 10 reais, 20 reais… é um verdadeiro absurdo.

Segundo, que não há qualquer garantia de segurança nesses casos. Seria muita ingenuidade pensar que um camarada que está tomando conta de uma porrada de carros iria arriscar a própria vida para abordar um eventual ladrão de carros e tentar impedir o roubo de um som ou mesmo do veículo. Pra que ele faria isso? Eu sei que eu jamais me arriscaria nem pelo meu próprio automóvel, muito menos pelo de outros. Dos males o menor. Se acontecesse algo assim, o máximo que o referido flanelinha poderia fazer é pedir desculpas e devolver o dinheiro do cara que teve o carro roubado (ele ainda teria no bolso a grana de dezenas de outros proprietários, portanto, não faria muita diferença), quem sabe avisar a polícia (isso se for um flanelinha muito gente boa).

O problema é que na maioria das cidades estamos sozinhos nessa. No texto que citei acima, Isabella Ianelli relata que:

“Não faz muito tempo, decidi ir à Pinacoteca do Estado de carro e fui abordada por um flanelinha de esquema profissional. Narrei o episódio neste texto. Ele me pediu um absurdo, e eu fechei a cara, falei um monte e tirei o carro de lá. Parei em um posto policial do outro lado da rua, a cerca de 100 metros do lugar. Expliquei a situação, enquanto os policiais nem me olhavam, distraídos com qualquer coisa que não fosse a minha história.

Disseram que não há o que fazer. Que eu poderia ir a uma delegacia fazer um Boletim de Ocorrência, que eles chamariam o indivíduo, que negaria tudo, seria solto e continuaria a agir.”

Claro que se alguém tem alguma experiência diferente dessa descrita acima, eu gostaria muito de ler.

Infelizmente, eu concordo com quem acha que não há muito o que fazer, pelo menos a curto prazo. A nossa imobilidade geral nos leva a uma acomodação que só nos afunda cada vez mais em “coisinhas irritantes” que tornam a experiência de sair de casa para nos divertir uma potencial fonte de preocupação ou aborrecimento.

Alguém está realmente surpreso?

Tenho visto, ouvido e lido nas últimas semanas diversas manifestações de surpresa e espanto quanto aos problemas que vêm ocorrendo devido às chuvas, em especial no caso de Minas Gerais, estado no qual resido. E aí, eu me pergunto: qual o motivo de tanto espanto?

Claro que a quantidade elevada de água que vem caindo nas tempestades de verão (que se iniciaram ainda na primavera) ultrapassou um bocado a curva média, como não cansam de falar meteorologistas televisivos e políticos regionais e nacionais. Porém, diante do fato óbvio de que chove muito nesta época do ano, e tendo em vista o rápido crescimento, quase sempre desordenado e em boa medida irregular, de várias regiões urbanas ao longo do tempo, como ficar surpreso com os problemas que se repetem neste verão se as medidas que deveriam ser tomadas pelo poder público praticamente inexistem (ou pelo menos são quase completamente ineficientes)?

Como bem escreveu o jornalista Leonardo Sakamoto em seu blog no texto “Pena que a memória dos eleitores seca rápido”:

“Desgraça é desgraça, descaso é descaso. Desgraças acontecem, mas parte delas poderia ser prevenida, planejada, antecipada, informada, pois não são novidade. Nesses casos, o que é tragédia vira descaso”

E mais à frente em seu texto:

“Ano vem, ano vai – e é sempre a mesma coisa. Administradores públicos reclamando que não daria para fazer nada porque a chuva resolveu cair toda de uma vez, culpando La Niña, El Niño, o calendário Maia…

E se choveu mais do que deveria, não há nada que se possa fazer, correto? Bem, isso se, há muitos anos, já não fosse típico a realidade de chuvas atípicas em certas regiões do país.”

É claro que não adianta culpar somente aqueles que atualmente ocupam as prefeituras, os governos estaduais e os centros do governo federal, pois há toda uma história de descaso construída durante anos de politicagem eleitoral em que o objetivo maior de políticos é se eleger, re-eleger ou fazer seu sucessor. Nesse cenário, de que importam ações, obras, programas e estratégias que só terão visibilidade uma vez por ano? Como tomar atitudes extremamente impopulares quanto à organização do espaço urbano? Como planejar a médio e longo prazo se não há pessoal capacitado (ou motivado) para isso?

No trecho a seguir, retirado deste texto do Correio Braziliense, divulgado no site do Ministério do Planejamento, há um questionamento parecido:

“se boa parte das cidades atingidas são construídas em áreas de risco, por que não se tomam medidas capazes de prevenir o drama das chuvas? Uma das respostas é a falta de planejamento. Trata-se de traço da cultura brasileira. Governantes se sucedem, partidos deixam o poder e a ele voltam tempos depois, mas o cenário se repete com indescritível falta de criatividade. Todos parece verem a tragédia pela primeira vez, como se estivessem diante de fatalidade contra a qual nada pudessem fazer.”

E assim começaram as promessas e os planos, mas será que veremos, neste ano eleitoral, algo além de medidas paliativas e implantação de sistemas de alerta?

Retomando o texto do Sakamoto citado acima, destaco um trecho que exemplifica ações que deveriam estar no topo das prioridades políticas:

“políticas de habitação decente, saneamento, dragagem de rios, limpeza de vias, campanhas de conscientização quanto ao lixo. O fato é que ocupação irregular, planejamento, plano diretor, reforma urbana são expressões ouvidas apenas no tempo das chuvas. Na seca, evaporam do léxico não só dos mandatários, mas também de pobres e ricos, que continuam construindo, desmatando e poluindo. Suas razões são diferentes, mas o efeito é o mesmo. Vale lembrar que tudo isso dito aí em cima não gera um voto, pelo contrário: quem é o doador que vai ficar feliz por ter a construção de sua casa em uma área de preservação ambiental embargada?

Considerando que quando há um problema urbano os mais pobres são expulsos do lugar onde estavam para um lugar perto da esquina entre o ‘não me encha o saco’ com o ‘não me importa aonde’, é de se esperar também que a remoção deles de áreas de risco e de locais inundáveis também seja precedida de grandes protestos que irão reverberar nas urnas. Então, ninguém faz nada, só promete e faz cara de preocupado e de entendido. Afinal, é de palavras vazias que vive nossa política.”

Claro que não espero ver qualquer tipo de revolução nas políticas públicas tão cedo (se é que vou chegar a ver algum dia), pois as eleições no Brasil continuam sendo um grande circo onde o que menos importa na fala dos candidatos é a apresentação de programas e planejamentos efetivos de médio/longo prazo. Infelizmente, o que eu acho que acontecerá ainda nos próximos anos são reprises do que acontece neste verão, do que aconteceu ano passado e em outros anteriores. Novamente citando o texto do Sakamoto:

“continuaremos a ver as cenas de sempre: alguém será levado pela correnteza e famílias perderão tudo, sendo alojadas em ginásios de escolas públicas. Vão ganhar espaço na mídia, mas o debate vai durar só até o asfalto secar.”