Não achei que voltaria ao mesmo tema tão cedo. Mas eis que sou surpreendido com mais uma notícia bizarra, mais ou menos dentro do mesmo assunto que compartilhei no texto anterior.
Segundo notícia do Jornal de Piracicaba, um homem foi retirado do plenário da Câmara de vereadores da cidade pela Guarda Civil e pela Polícia Militar porque recusou a se levantar durante a leitura da bíblia no início da sessão ordinária. O site de notícias G1 detalhou mais o caso, e ficamos sabendo que o homem chama-se Regis Montero e é funcionário do Ministério Público.
Nas imagens disponibilizadas no site da Câmara é possível ver que o vereador André Bandeira começa a leitura da Bíblia quando foi interrompido pelo presidente da Casa, João Manuel dos Santos. Este pediu que Montero ficasse em pé durante o ato ou que se retirasse. Após uma discussão, o manifestante foi expulso à força do prédio.
O diretor jurídico da casa legislativa de Piracicaba, Robson Soares, disse o seguinte: “O ato da leitura bíblica está no artigo n° 121 do Regimento Interno. É algo presente nas sessões desde a criação do Legislativo piracicabano. Não obrigamos ninguém a acompanhar a leitura, mas que essa pessoa respeite as regras da Casa ou que se retire”.
Uma grande asneira, simplesmente porque não há no Regimento Interno da Câmara de Piracicaba qualquer referência à necessidade de se estar em pé para o momento de leitura da Bíblia. O referido art. 121 diz apenas o seguinte: “No início dos trabalhos o Presidente declarará aberta a Reunião, solicitando ao Primeiro Secretário para que faça a chamada dos Vereadores e ao Segundo Secretário para que faça a leitura bíblica”. Ou seja, o próprio diretor jurídico não sabe do que está falando, posto que o regimento só fala que haverá a leitura, não diz nada sobre qual posição deve ser adotada. Além disso, age da mesma forma que os personagens das notícias do meu texto anterior; não basta defender a prática religiosa em uma instituição pública, tem que obrigar todos a participar ativamente, os discordantes que se ponham pra fora.
Porém, o buraco é obviamente muito mais embaixo. Como bem declarou ao G1 o presidente da OAB de Piracicaba, a expulsão do cidadão “é inconstitucional, pois o estado brasileiro é laico. Ninguém pode ser impedido de acompanhar a sessão na Câmara por não ser católico” (ou cristão, ou por não ter qualquer religião). Na verdade, vou além; o próprio art. 121 desse Regimento Interno afronta claramente o inciso I do art. 19 da atual Constituição Federal, que é bem claro ao determinar que é vedado ao poder público “estabelecer cultos religiosos”. Ora, e não seria o momento de leitura bíblica um mini-culto religioso?
Para finalizar, compartilho as palavras do próprio Regis Montero, publicadas no Facebook:
“(…)
No dia 29.10.12, este assunto causou lamentável episódio na Câmara de Vereadores de Piracicaba, onde as sessões são iniciadas com a leitura da Bíblia. Nessa data, quando todos os demais se levantaram para o ato, um cidadão escolheu permanecer sentado, em silêncio, de olhos fechados, sem se mover. Por que terá feito isso? Quem será ele? O que será que ele pensa? Qual será sua religião?
Seria um budista que, diante da evocação de Deus, entrou em oração, conforme os mandamentos de sua crença? Seria um muçulmano, que percebeu que todos estavam de costas para a Meca? Seria um judeu, um espírita, um protestante? Seria, um católico, que, como as pessoas que cercavam Jesus durante o Discurso da Montanha ou na Última Ceia, ouviram as Palavras de Deus sentados e quis manter-se na mesma posição em que hoje Jesus, também sentado, está ao lado de seu Pai? Seria, quiçá, um ateu, que, mesmo não querendo participar do ato, permaneceu, com respeito e amor ao seu próximo, em silêncio sem incomodar o louvor de todos os outros?
Ninguém soube, pois ele sequer teve oportunidade de permanecer no recinto. Por ordem do Excelentíssimo Presidente da Câmara, homens da Guarda Civil Municipal e da Polícia Militar ali presentes o expulsaram da chamada Casa do Povo. Será que para esta Casa, povo é apenas o cidadão que tem religião? Mais do que isso, cuja religião cultua Jesus mas não reconhece Maomé, Buda e outras figuras sagradas? Mais ainda, que admite apenas uma forma de cultuar Jesus ou Deus, vale dizer, a sua, de pé?
(…)
Quando uma pessoa agride outra, seja lá por qual forma for, considera-se que houve uma violência, uma injustiça. Quando a agressão é feita com uso de meios que só uma das partes têm, a violência ganha requinte de covardia. O Excelentíssimo presidente da Câmara, por quem sempre terei incondicional respeito, mandou expulsar-me alegando que a regra estava prevista no regimento da Casa. Regimento que somente ele, por ser vereador, mas não eu ou qualquer outro cidadão, pode criar e modificar. Ou seja, a violência religiosa que sofri foi praticada com base em instrumento que só ele tem. Foi praticada contrariando a Constituição Federal e a Lei de Improbidade Administrativa, na frente de todos, na presença da imprensa, com transmissão ao vivo por rádio e televisão.
São reflexos deste nosso tempo, em que religião é praticada em parlamentos e política é feita em templos, como se nunca tivesse existido a passagem bíblica que diz dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus!
Já participei de cultos das mais diversas religiões. Jamais um ato meu atrapalhou qualquer desses eventos, mesmo que eu não concordasse com nada do que via, pois considero que a tolerância e o respeito às diferenças são não só fundamentais para a construção de uma sociedade livre e pacífica, como também uma grande oportunidade de se aprender com o próximo e, quem sabe, ser retirado do erro. E se algum vez, mesmo que na luta por meus direitos, uma só conduta minha for indigna desta cidade, humildemente me retratarei e reverterei a injustiça que tiver praticado, nem que isso exija minha despedida. Por que, então, impedem que eu, em paz e com repeito, permaneça da forma que me parece mais adequado às minhas crenças?
Tenho o mais absoluto respeito pela opção religiosa de cada pessoa, mesmo que com ela não concorde. Gostaria de receber igual tratamento dos demais. Não é esse o mandamento? ‘ama o teu próximo como a ti mesmo’?
Em futuras sessões da Câmara Municipal de Piracicaba, é possível que outras pessoas professem sua fé da maneira que lhe parecer mais adequado à sua crença. Ou, talvez, alguém prefira não participar de qualquer manifestação religiosa. Desde que todos sejam respeitados, a mim isso não representará incômodo. Porém, seu Presidente alega que o Regimento proíbe excluir-se das práticas religiosas escolhidas por esta Casa. Sua Excelência terá que escolher lealdade à norma que ele e seus pares podem modificar, ou à Constituição Federal, à Lei de Improbidade Administrativa, à Declaração Universal dos Direitos dos Homens e do Cidadão, à Convenção Interamericana de Direitos Humanos e, mais do que isso, ao respeito que, como cidadão e como cristão, deve a seu próximo.
(…)”